O Museu de Cluny, em Paris, abriga uma obra-prima da arte europeia medieval: a sequência de tapeçarias “La Dame à la Licorne” (a dama e o unicórnio). Os seis tapetes, de tamanho monumental, foram tecidos em lã e seda em Flandres, na primeira década do século 16, a partir de desenhos preparatórios feitos na França. Tudo indica que foram encomendados pelos Le Viste, uma poderosa família de magistrados e comerciantes da cidade francesa de Lyon.
Cinco das peças exibem alegorias dos sentidos –paladar, audição, olfato, visão e tato– enquanto que a sexta, “Ao Meu Único Desejo”, a mais imponente e intrigante, parece simbolizar a renúncia ao mundo material, com seus prazeres e tentações, em favor do amor espiritual. Em todas, a dama está flanqueada por um leão, que simboliza a força, e por um unicórnio, símbolo da pureza. Alguns elementos de natureza matemática (simetrias, padrões repetitivos, uso de escalas e hierarquias) acentuam o mistério e o encantamento do conjunto.
Recentemente, fiquei sabendo que o Museu de Cluny abriga outra tapeçaria, menos conhecida mas não menos notável, que faz uma referência ainda mais explícita à matemática. Foi a professora Maria Vargas, da Universidade Federal Fluminense, uma de nossas maiores especialistas em química, que “descobriu” durante uma visita a Paris e me contou. Trata-se de “Arithmétique”, que apresenta uma personificação feminina da aritmética, a ciência dos números naturais (1, 2, 3, …), rodeada por alunos e manipulando contadores (jetons), um livro com algarismos indo-árabes, e outros objetos de natureza matemática. A legenda, em latim, explica: “sou a arte do número, que explica a proporção das coisas”.
“Arithmétique” foi igualmente tecida em Flandres, nas duas últimas décadas do século 15, ou seja, uns 20 anos antes de “La Dame à la Licorne”. A diferença de datas é pequena, mas importante, pois, apesar de seus pontos em comum, as duas obras pertencem a momentos bem distintos da arte gótica europeia.
Sem deixar de ser medieval, “La Dame à la Licorne” já anuncia a transição para a sensibilidade do Renascimento e os ideais do humanismo. Seus símbolos têm uma função moralizante, construindo uma apologia da virtude moral individual.
Já “Arithmétique” pertence firmemente à tradição erudita medieval, representando o saber matemático como virtude intelectual. Acredita-se que fizesse parte de uma série de sete tapetes dedicada às sete artes liberais em que era dividido então o conhecimento: a gramática, a dialética e a retórica, que constituíam o “trivium”, o ciclo inicial do ensino superior; e a aritmética, a geometria, a música e a astronomia, que formavam o “quadrivium”, o ciclo avançado de estudos na Idade Média. Infelizmente, as demais peças da série se perderam, se é que realmente existiram.
Tapetes tinham então funções muito diversas: além de revestirem chão e muros, protegendo contra o frio e a umidade e conferindo cor e luxo ao ambiente, também serviam para “contar” histórias heroicas ou edificantes. A tapeçaria europeia teve sua idade de ouro na Flandres do século 14 ao século 17, quando a descoberta da pintura a óleo levou à gradual substituição das tapeçarias por quadros na decoração das paredes.
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