No último mês, encerrou-se um ciclo de dois anos de morte, destruição, fome e deslocamento forçado em Gaza, desproporcionalmente provocados pelo governo de Israel em resposta ao massacre de 7 de Outubro, o sequestro dos reféns e à ameaça do Hamas. Um cessar-fogo foi finalmente assinado.
Desde então, as hostilidades foram muito circunscritas, os reféns vivos foram libertados, a ajuda humanitária franqueada e uma onda sem precedentes de países reconheceu o Estado da Palestina.
Mesmo assim, no último dia 23, a FFLCH (Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Sociais) da Universidade de São Paulo decidiu, extemporaneamente, reagir à tragédia com o rompimento de um convênio com a UH (Universidade de Haifa), que expiraria 20 dias depois da sua rescisão entrar em vigor.
A decisão se baseou em um relatório frágil que contém informações inverídicas, como a de que a UH abrigaria a base militar de Glilot. Essa base militar fica a nada menos do que 85 km do campus da universidade.
Mesmo após se demonstrar o erro factual, a inverdade continuou a ser repetida por alunos e docentes, pois esse debate, ainda que universitário, tem sido conduzido pela comoção via redes sociais bem como pela intimidação.
Para além de erros factuais há também erros conceituais. O primeiro é confundir ações de governo com a universidade e com a sociedade civil.
Mesmo o presidente Lula, conhecido crítico das ações de Israel em Gaza, fez a diferenciação, enfatizando que o Brasil não tem problema com Israel, mas sim com Netanyahu. A composição da Universidade de Haifa é ainda mais diversa do que a sociedade israelense: 42% dos 18 mil alunos são palestinos, mais que o dobro da proporção em Israel. Palestinos também se destacam no corpo docente, incluindo a própria reitora, a neurobióloga Mouna Maroun.
As universidades israelenses, assim como a USP, têm autonomia em relação ao governo. Duzentos e setenta docentes de Haifa, entre eles a reitora, além de vários funcionários e estudantes, publicaram um manifesto contra a guerra em Gaza no jornal Haaretz em 8 de agosto.
Docentes também criaram o observatório Olhos em Gaza para denunciar e resistir ao que consideram crimes cometidos em seu nome, como israelenses. Ao contrário do que sugere o frágil relatório, que acusa a universidade de aplicar “políticas extremas de vigilância e policiamento em relação aos seus estudantes palestinos”, mesmo o direito de expressão dos estudantes que apoiaram o 7 de Outubro foi garantido. Alunos e docentes protestaram contra a guerra no campus por dois anos.
O terceiro e principal erro é acadêmico: o rompimento prejudica as atividades de alunos e docentes da FFLCH, especialmente do curso de letras e da pesquisa em estudos judaicos.
O último erro é político. Com o boicote, renunciaremos ao único papel acadêmico capaz de contribuir à paz na região. A FFLCH tem uma posição privilegiada como espaço de interlocução para promover, aqui, o diálogo entre acadêmicos israelenses progressistas de Haifa e palestinos moderados, incluindo os exilados e refugiados, em busca de soluções para esse longo conflito.
É hora de viabilizar um Estado palestino soberano, seguro e viável e de garantir os direitos humanos, civis e nacionais a todos os que vivem entre o rio e o mar. Os acadêmicos no terreno terão um papel fundamental. O boicote fortalece os extremistas e fanáticos enquanto silencia e isola os democratas e humanistas, como estudantes e docentes palestinos.
A ativista Sally Abed explica no podcast The Long Answer: “Quando você vê uma palestina de Israel [como eu] no exterior e você quer boicotá-la num campus, você é uma moça branca com um lenço palestino”.
















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