Alguma dessas redes sociais em que bilionários americanos nos mantêm em cativeiro me apresenta, como compensação pela solicitude de minha servidão, um vídeo em que o linguista português Marco Neves conversa com seu compatriota —e meu colega de Folha— Ricardo Araújo Pereira sobre vaga-lumes.
Ou melhor: sobre caga-lumes, como se diz com mais frequência em Portugal. Ou pirilampos, se optarmos pela palavra majoritariamente usada por lá. Na verdade, a conversa era sobre essa diversidade: por que um inseto tão pequeno se cerca dessa riqueza vocabular?
Tudo indica que o caga-lume nasceu primeiro. O Houaiss situa o registro de estreia do termo em 1587, cerca de 200 anos antes de seu irmão mais educado, o vaga-lume, pousar pela primeira vez numa página impressa.
Presidiu o nascimento do vaga-lume a velha disposição do eufemismo –a força que leva vocábulos populares tidos como chulos a ganharem versões atenuadas ou disfarçadas. Aquilo que, por exemplo, transformou “puta” em “pucha” no espanhol –e mais tarde em “puxa”, interjeição perfeitamente familiar, no português.
Pena que o Houaiss, bom dicionário brasileiro de elevada ambição lusofônica, tropece ao registrar caga-lume como “brasileirismo”. Pode ter sido traído pela fonte da datação da palavra, a obra histórica “Notícia do Brasil”, de Gabriel Soares de Sousa.
Trata-se de um dos mais importantes trabalhos do século 16 sobre a terra brasílica, também conhecido como “Descrição verdadeira de todo o Estado pertencente à Coroa de Portugal, da fertilidade dessa província, de todas as aves, animais, peixes, bichos, plantas, que nelas há, e dos costumes dos seus naturais”.
Por mais que houvesse novidades brasileiras em penca na obra de Soares de Sousa, a palavra “caga-lume”, de raízes lusitanas tanto na etimologia quanto no gosto pela expressão crua, não seria uma delas –mesmo porque, àquela altura, praticamente só os colonizadores falavam tal língua por aqui. O dicionário Priberam classifica caga-lume, de modo mais plausível, como regionalismo português.
Há fortes evidências de que era a palavra preferida dos lusoparlantes d’além-mar para chamar o bichinho que pisca no escuro –embora tivesse a concorrência de um termo também pitoresco como luze-cu– até que, em fins do século 17, um grupo de intelectuais liderados pelo conde da Ericeira achou que aquilo não ficava bem.
Essa é a história contada por Marco Neves a Ricardo Araújo Pereira –a de como alguns portugueses cultos, dispostos a “civilizar” a língua espontânea do povo, criaram em laboratório com elementos gregos a palavra “pirilampo”.
Esse tipo de intervenção não costuma dar certo. No caso, deu –e muito. Isto é, em Portugal.
No Brasil, onde o vaga-lume domina a cena, pirilampo é uma palavra de ranço preciosista, parnasiano. “Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”, escreveu Machado de Assis para fechar seu famoso soneto “Círculo vicioso”.
Tiro duas semanas de férias. Dia 3/12 estou de volta. Até lá!
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