O discurso de Donald Trump na ONU chamou mais atenção no Brasil pela surpresa do aceno simpático a Lula, o que é natural. No entanto, seus traços mais marcantes foram os teores vertiginosos de mentira e egolatria, elementos presentes em doses iguais numa paráfrase como esta: “Esqueçam as Nações Unidas. Eu, Donald, sou a solução dos problemas do mundo”.
Além de ser o maior torpedo já lançado contra a ordem mundial do pós-Guerra, presente de grego no aniversário de 80 anos da entidade, a fala do presidente americano —que teve quatro vezes a extensão pactuada com os chefes de Estado, o que é parte calculada da banana dada às regras multilaterais— é emblemática da armadilha de linguagem em que o mundo caiu.
Em 2016, quando Trump se elegeu pela primeira vez, o dicionário Oxford escolheu “post-truth” (pós-verdade) como palavra do ano, nome de uma nova era que começava. Houve quem não gostasse, vendo naquilo um eufemismo gourmet para a velha mentira, que nunca esteve em falta na política.
Nove anos depois, multiplicam-se as evidências de que, se “pós-verdade” podia não ser a melhor escolha vocabular, uma nova fase da história começou de fato naquele momento. Uma fase que chega a uma perigosa apoteose no segundo mandato do amigo do peito de Jeffrey Epstein.
Até então, a mentira —em forma de omissão, meia-verdade, manipulação de dados, calúnia etc.— tinha sido uma arma sempre presente na linguagem política, disponível a qualquer um disposto a mandar os escrúpulos às favas a fim de obter alguma vantagem competitiva.
Bonito nunca foi. Basta pensar na campanha contra Marina Silva que os marqueteiros de Dilma Rousseff lançaram em 2014, fazendo a comida sumir magicamente do prato dos pobres. No entanto, tudo isso se dava num quadro de valores ainda compartilhados.
Fincados num solo de informação factual, conhecimento científico e decência humana, tudo amalgamado em senso comum, esses valores levavam o político que fosse apanhado mentindo a se ver em apuros.
Podia negar o malfeito, se dizer arrependido ou desconversar. Só não podia bater no peito e urrar que, quanto mais o acusassem de ter errado, mais certo estaria —e ver sua desfaçatez aplaudida por multidões. Hoje pode.
Filha das redes sociais e sua reengenharia radical de subjetividade e sociabilidade, a nova era pariu um mundo paralelo em que a Terra é plana, Tylenol provoca autismo, a crise climática é a maior farsa da história, Trump é estadista, Bolsonaro nunca tentou um golpe e brasileiros patriotas se curvam à bandeira dos EUA.
Pariu, em resumo, a nova extrema direita. Na ONU, como observou o colega colunista Rui Tavares, Lula discursou como representante de um tempo e Trump, de outro. Acima —e abaixo— de divergências ideológicas, o que torna as duas falas incompatíveis é uma questão de linguagem.
Sem restaurar algum tipo de pacto racional entre discurso e realidade, será impossível cumprir aquela que é sem dúvida a grande missão da nossa geração: derrotar essa nova e agressiva cepa de fascismo.
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